Além da Letra

"Cada enunciado é um elo de uma cadeia muito complexa de outros enunciados" Mickail Bakhtin

segunda-feira, setembro 25, 2006

Fracasso Escolar

A primeira teorização sobre as dificuldades de aprendizagem surgiu na França, no final do século XIX, e ficou conhecida como Abordagem Organicista (Fijalkow, 1989), por investigar as causas do fracasso escolar levantando hipóteses sobre os possíveis distúrbios e doenças neurológicas do aluno. As pesquisas realizadas nessa linha de investigação promoveram uma verdadeira classificação médica dos problemas de aprendizagem. Nos dias de hoje, quando se encaminha um aluno para uma avaliação neurológica, buscando apoio na contribuição da medicina para a compreensão das dificuldades de aprendizagem, o resultado do diagnóstico aponta, geralmente, como causa do problema do escolar um quadro de dislexia, disfunção cerebral mínima (DCM) ou hiperatividade.
Moysés e Collares chamam nossa atenção para a necessidade de se fazer distinção entre a dislexia – quadro conhecido em neurologia, em que a perda do domínio da linguagem escrita pode ocorrer em conseqüência de seqüela (temporária ou definitiva) de uma patologia do sistema nervoso central – e a dislexia específica de evolução – nome da entidade patológica que foi empregada no campo de estudos dos problemas de aprendizagem da leitura e da escrita. Segundo essas autoras, a dislexia específica de evolução foi "inventada" a partir da suposição de que, se alguém que já sabe ler e escrever perde a capacidade de fazê-lo em função de uma patologia do sistema nervoso central, então, crianças que têm dificuldade em aprender ou não aprendem a ler e a escrever, possivelmente, deverão ter alguma patologia dessa ordem. Assim, a partir dessa idéia, uma das perguntas que orientou as pesquisas nessa área passou a ser: "se uma doença neurológica pode comprometer o domínio da linguagem escrita, será que a criança que não aprende a ler e escrever teria uma 'doença neurológica'?" Como você pode perceber, o conceito de "Dislexia Específica de Evolução" é proposto com base na transposição de um tipo de raciocínio, perfeitamente aplicável na área médica, para a área educacional. Porém, a pertinência dessa transposição precisa ser examinada com cuidado.
Valendo-se desse mesmo tipo de raciocínio, Strauss, um neurologista americano, lançou, em 1918, a hipótese segundo a qual os distúrbios de comportamento dos escolares e também alguns dos distúrbios de aprendizagem poderiam ser conseqüência de uma lesão cerebral mínima. Ou seja, tais distúrbios seriam em decorrência de uma lesão, suficiente para alterar o comportamento e/ou alguma função intelectual, mas mínima o bastante a ponto de não ocasionar outras manifestações neurológicas. Essa hipótese de Strauss não foi acolhida no meio científico nem divulgada, naquela época, para a sociedade. Contudo, alguns anos mais tarde, em 1957, a lesão cerebral mínima ressurge na medicina, como equivalente à síndrome hipercinética ou hiperatividade. Em 1962, durante um simpósio internacional, realizado em Oxford, com a participação de grupos de pesquisa dedicados ao estudo da lesão cerebral mínima, chegou-se à conclusão de que não havia nenhuma lesão. Vários métodos de investigação foram utilizados e não se conseguiu detectar nenhuma lesão. Os pesquisadores admitiram o erro e, para corrigi-lo, renomearam o quadro, passando a chamá-lo de disfunção cerebral mínima (DCM). A descrição das manifestações clínicas dessa nova entidade foi ampliada: hiperatividade, agressividade, distúrbio de aprendizagem, déficit de concentração, instabilidade de humor, baixa tolerância a frustrações, para citar apenas as mais divulgadas.
Várias críticas são apresentadas, atualmente, a essa abordagem do fracasso escolar e das dificuldades de aprendizagem. A abordagem Organicista é sempre citada como a grande responsável pela medicalização generalizada do fracasso escolar, pois o tratamento proposto para sanar as dificuldades de aprendizagem da criança é o uso de remédios psiquiátricos. Uma das conseqüências mais indesejada da utilização dessa abordagem é a identificação do aluno como alguém que possui uma falha orgânica, ou seja, um déficit neurológico. Ao se empregar termos como "Dislexia", "Hiperatividade" e "Disfunção Cerebral Mínima", tende-se a ver o(a) aluno(a) como o(a) "único(a) responsável" pelo seu próprio fracasso. Como conse­qüência, limita-se, assim, o campo de investigação do fracasso escolar, uma vez que outros fatores intervenientes na produção desse fenômeno são desconsiderados. A "facilidade" com que esse diagnóstico é utilizado nas escolas cria um quadro de encaminhamento para atendimento médico e prescrição medicamentosa, levando à biologização de um fenômeno da esfera escolar, produzindo gerações que acabam por se tornar conhecidas como "geração comital ou gardenal" (Vidal, 1990; Cypel, 1993).
A segunda abordagem do fenômeno do fracasso escolar surgiu a partir do desenvolvimento de pesquisas no campo da psicologia cognitiva. Trata-se da Abordagem Instrumental Cognitivista, assim designada por buscar as causas das dificuldades de aprendizagem em possíveis disfunções relativas a um dos quatro processos psicológicos fundamentais: a percepção, a memória, a linguagem e o pensamento. Segundo Sena (1999), o diagnóstico realizado utiliza-se basicamente do processo de investigação diferencial (comparando um grupo considerado normal a outro considerado atrasado) e busca identificar os seguintes sintomas: a desorganização espaço-temporal, os transtornos de lateralização, o desenvolvimento inadequado da linguagem, os transtornos perceptivos visuais e auditivos, os déficits de atenção seletiva, os problemas de memória. Fijalkow (1989), Nunes, Buarque e Bryant (1992) analisam um grande conjunto de pesquisas desenvolvidas a partir dessa perspectiva e apontam alguns problemas que precisam ser considerados ao interpretar os resultados das mesmas. Um desses problemas diz respeito, por exemplo, à não-neutralidade e à não-objetividade das situações de teste a que as crianças são submetidas, em decorrência da dificuldade de se isolar variáveis para que essas possam ser testadas independentemente uma das outras. Além disso, deve-se considerar que a abordagem cognitivista, como a abordagem organicista, procura as causas do fracasso das crianças apenas nas características individuais, desconsiderando possibilidades explicativas em outras esferas.
A Abordagem Afetiva caracteriza-se por privilegiar como explicação causal do fracasso escolar os transtornos afetivos da personalidade. Partidários dessa abordagem defendem a idéia de que as causas das dificuldades de aprendizagem devem ser buscadas em perturbações no estado socioafetivo da criança e não em supostos problemas neurológicos ou cognitivos. Nessa perspectiva, o atraso do aluno é uma manifestação de suas dificuldades originadas de algum conflito emocional (consciente ou inconsciente), cuja origem encontra-se na dinâmica familiar. Por meio da utilização do método clínico, propõe-se, primeiro, investigar se a dificuldade é de fato um problema de ordem pedagógica ou psicológica, para, posteriormente, buscar compreender porque uma determinada criança elege um determinado sintoma e não outro como expressão de suas dificuldades emocionais. Uma das críticas feitas a essa abordagem decorre do fato de que essa acaba por dar subsídios para que se responsabilize a criança e sua família por dificuldades que surgem na esfera escolar, transferindo para fora da escola – para as famílias, para as clínicas – a busca de soluções para os problemas da criança.
A abordagem denominada Questionamento da Escola reúne estudos que investigam diferentes fatores escolares como intervenientes na produção do fracasso dos alunos; dentre esses se destacam, por exemplo: a inadequação dos métodos pedagógicos, as dificuldades na relação professor-aluno, a precária formação do professor, a falta de infra-estrutura das escolas da rede pública de ensino. Segundo Sena (1999), "deslocando a questão do aluno que não aprende para a escola que não ensina" seguidores dessa abordagem propõem modificações na estrutura e organização da escola, a fim de que essa instituição cumpra seu papel social.
A abordagem do Handicap Sociocultural identifica no meio sociofamiliar a origem do fracasso das crianças na escola. Adeptos dessa abordagem consideram a bagagem sociocultural dos alunos e de seus familiares um fator decisivo, tendo em vista que a maioria dos alunos que fracassam na escola é oriunda das camadas populares. Um argumento central na articulação dessa abordagem é que essas crianças apresentam uma linguagem deficitária o que, em conseqüência, implicaria déficit cognitivo. Segundo Soares (1987), teorias do déficit cultural, lingüístico e cognitivo ocultam a verdadeira causa da discriminação das crianças das camadas populares na escola – a desigual distribuição de riqueza numa sociedade capitalista – e terminam por responsabilizar as crianças e suas famílias por suas dificuldades e isentar de responsabilidade a escola e a sociedade. De acordo com Sena (1999), "apesar do número significativo de pesquisas comprovando o caráter ideológico do discurso que fundamenta essa abordagem, ainda hoje podemos constatar como seus pressupostos estão presentes e influenciam fortemente a opinião dos profissionais da educação" sobre possíveis causas do fracasso escolar.
Elementos para o questionamento de teorias do déficit.
A breve caracterização das diferentes abordagens do fracasso escolar, apresentada acima, permite constatar que os considerados fracassados são situados em uma mera posição de objeto do conhecimento, marcados por um processo diagnóstico que, embora oscile entre oferecer como explicação causal do fracasso escolar ora uma disfunção neurológica ou cognitiva, ora um transtorno afetivo, ora problemas lingüísticos, não vacila em apontar esses sujeitos como deficitários (Santiago, 2000).
Segundo elas, os pais não têm interesse no estudo dos filhos e acabam desestimulando as crianças. “A família é a raiz da criança”. A falta de escolaridade e a profissão dos pais influenciam no desinteresse das crianças, uma vez que não têm perspectiva de futuro. As causas da indisciplina e rebeldia em sala de aula também são atribuídas ao convívio familiar atribulado e violento “cheio de brigas”, alcoolismo, banditismo. A angústia gerada por este convívio acaba explodindo na sala de aula.
É para queixar-se aos pais ou dos pais que as reuniões com eles acontecem. A expectativa em relação à presença dos pais é sempre negativa, em especial dos pais de alunos considerados problemáticos, assim direção, coordenação e professoras dizem numa só voz os pais dos alunos que precisam nunca vêm. A relação estabelecida com os pais é baseada na submissão, pois se fala aos pais, mas estes não são ouvidos.
A comparação do desempenho das crianças-alunos ocorre com freqüência nas reuniões e conseqüentemente alguns pais sentem-se mais valorizados, enquanto outros saem humilhados, cabisbaixos não se sentem no direito de perguntar, de questionar.
O relacionamento com a instituição escolar não é menos conflitante e as críticas à administração e a organização escolar aparecem com freqüência. Elas queixam-se das intromissões sofridas no trabalho em sala de aula, da falta de apoio material e pedagógico e da falta de respeito por parte da direção e coordenação que não valorizam o trabalho dos professores.

Desta forma procuram estratégias, tais como os alunos, para dar conta das frustrações daí procedentes. Estratégias que ora desqualificam os alunos e seus familiares e mesmo os seus pares, ora na busca de argumentos que disfarce erros ou enganos cometidos. Na tentativa de manter uma imagem intocável e de perfeição acabam sofrendo um enorme desgaste físico e psíquico.
Nesse processo de desqualificação e de submissão, as professoras também se sentem lesadas quando se referem à implantação da Progressão Continuada. Acreditam, elas, que a Progressão Continuada só piorou a situação educacional. Estão assustadas e preocupadas com o grande número de alunos que ainda não estão alfabetizados, mas que freqüentam a 3a ou 4a séries. A fala da diretora ilustra a opinião das professoras no tocante a esse assunto:
É um crime um aluno que não sabe ler nem escrever estar na 3a ou 4a séries, afinal são conhecimentos a serem adquiridos até a 2a série.
As professoras apresentam uma visão crítica das mudanças ocorridas no sistema educacional, mas esta parece referir-se muito mais a uma perda de controle e de poder do que realmente uma preocupação com a melhoria da qualidade do ensino, pois ao defenderem a reprovação ou a permanência do aluno na série anterior desejam um retorno a um estado de coisa, que sabemos não é a solução. Não se trata de culpabilizar os professores pelos problemas advindos dessa política, mas como responsáveis diretos, in locus, pela aprendizagem das crianças-alunos é necessário que se dêem conta de que são as pessoas mais aptas a buscarem soluções para o problema. Para além da queixa faz-se necessário que busquem alternativas coletivas, que pensem e reflitam. Claro que se torna imprescindível questionar as políticas educacionais que costumeiramente são impostas, assim como reivindicar mudanças, mas acreditar que voltando ao que era estará solucionado o problema é no mínimo um descompromisso ético com a profissão que exercem e com os sujeitos de sua ação.
Embora se mostrem conscientes da má qualidade da educação pública e da precariedade do ensino oferecido, em especial aos alunos da classe popular, assim como das condições opressivas a que estão submetidos as professoras alimentam a crença em um aluno ideal, passível de ser modelado conforme um padrão de ensino, cujo resultado determinará a condição do aluno de capaz ou incapaz. Mesmo fazendo críticas aos determinantes políticos institucionais, estas se esvanecem quando avaliam os problemas enfrentados no cotidiano da sala de aula, de forma que as justificativas acabam novamente recaindo no aluno, por sua incompetência, indisciplina ou desinteresse ou em aspectos familiares: desinteresse, pobreza ou desestruturação familiar.
É possível que o desânimo, a falta de norte, a exasperação tanto com os alunos, como com os pais e com os próprios pares são resultados da situação difícil na qual vivem diariamente, deparam-se com a falta de apoio tanto emocional, quanto de recursos pedagógicos. Há na escola, para os professores, assim como para os alunos, a ausência de um interlocutor para as suas angústias e seus medos. O professor sente necessidade de um interlocutor, é isso que ele procura quando se queixa dos alunos. De acordo com Kupfer[1] (s.d) o que está em jogo nestas queixas é o modo como os professores imaginam seu papel, e quais os discursos em torno desse papel que impedem seu exercício eficaz. Implícito em suas queixas há toda uma história de trabalho sem reconhecimento e de desorientação, sentimento de impotência e de incompetência que precisa ver clarificada (Kupfer, s.d).
A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico (a patologização da educação)
Cecília Azevedo Lima Collares e Maria Aparecida Affonso Moysés
[1] KUPFER, Maria Cristina. O que toca à/a psicologia escolar: psicanálise na escola. s.l.; s.d. (texto mimeo).