Além da Letra

"Cada enunciado é um elo de uma cadeia muito complexa de outros enunciados" Mickail Bakhtin

quarta-feira, fevereiro 28, 2007


"Enquanto a sociedade feliz não chega, que haja pelo menos fragmentos de futuro em que a alegria é servida como sacramento, para que as crianças aprendam que o mundo pode ser diferente. Que a escola, ela mesma, seja um fragmento do futuro..."
Rubem Alves
“Nessa perspectiva, a natureza era passiva os cientistas podiam descrever o seu funcionamento em termos de leis eternas, que poderiam, eventualmente, ser afirmadas sob a forma de equações simples”. (Immanuel Wallerstein)




Tudo o que é sólido, desmancha no ar”. (Marx)
“Essa missão era a de unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases seguras, construindo um edifício plenamente iluminado pela verdade, por isso mesmo, todo feito de certezas racionais”. (Decartes)
Não existe uma razão, uma lógica e sim caminhas possíveis.

O homem; as viagens
Carlos Drummond de Andrade 100 anos: 1902-2002






O homem, bicho da Terra tão pequenochateia-se na Terralugar de muita miséria e pouca diversão,faz um foguete, uma cápsula, um módulotoca para a Luadesce cauteloso na Luapisa na Luaplanta bandeirola na Luaexperimenta a Luacoloniza a Luaciviliza a Luahumaniza a Lua.Lua humanizada: tão igual à Terra.O homem chateia-se na Lua.Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.Elas obedecem, o homem desce em Martepisa em Marteexperimentacolonizacivilizahumaniza Marte com engenho e arte.Marte humanizado, que lugar quadrado.Vamos a outra parte?Claro — diz o engenhosofisticado e dócil.Vamos a Vênus.O homem põe o pé em Vênus,vê o visto — é isto?idemidemidem.O homem funde a cuca se não for a Júpiterproclamar justiça junto com injustiçarepetir a fossarepetir o inquieto repetitório.Outros planetas restam para outras colônias.O espaço todo vira Terra-a-terra.O homem chega ao Sol ou dá uma voltasó para tever?Não-vê que ele inventaroupa insiderável de viver no Sol.Põe o pé e:mas que chato é o Sol, falso touroespanhol domado.Restam outros sistemas forado solar a col-onizar.Ao acabarem todossó resta ao homem(estará equipado?)a dificílima dangerosíssima viagemde si a si mesmo:pôr o pé no chãodo seu coraçãoexperimentarcolonizarcivilizarhumanizaro homemdescobrindo em suas próprias inexploradas entranhasa perene, insuspeitada alegriade con-viver.


terça-feira, fevereiro 27, 2007

O que saberás de mim é a sombra da flecha que se fincou no alvo.
Clarice Lispector
UMA TRANSA LINGÜÍSTICA


"Era a terceira vez que aquele substantivo e aquele artigo se encontravam no elevador. Um substantivo masculino, com um aspecto plural, com alguns anos bem vividos pelas preposições da vida. E o artigo era bem definido, feminino, singular: era ainda novinha, mas com um maravilhoso predicado nominal.
Era ingênua, silábica, um pouco átona, até ao contrário dele: um sujeito oculto, com todos os vícios de linguagem, fanático por leituras e filmes ortográficos.
O substantivo gostou dessa situação: os dois sozinhos, num lugar sem ninguém ver e ouvir. E sem perder essa oportunidade, começou a se insinuar, a perguntar, a conversar.
O artigo feminino deixou as reticências de lado, e permitiu esse pequeno índice.
De repente, o elevador pára, só com os dois lá dentro: ótimo, pensou o substantivo, mais um bom motivo para provocar alguns sinônimos. Pouco tempo depois, já estavam bem entre parênteses, quando o elevador recomeça a se movimentar: só que em vez de descer, sobe e pára justamente no andar do substantivo.
Ele usou de toda a sua flexão verbal, e entrou com ela em seu aposto. Ligou o fonema, e ficaram alguns instantes em silêncio, ouvindo uma fonética clássica, bem suave e gostosa. Prepararam uma sintaxe dupla para ele e um hiato com gelo para ela.
Ficaram conversando, sentados num vocativo, quando ele começou outra vez a se insinuar. Ela foi deixando, ele foi usando seu forte adjunto adverbial, e rapidamente chegaram a um imperativo, todos os vocábulos diziam que iriam terminar num transitivo direto.
Começaram a se aproximar, ela tremendo de vocabulário, e ele sentindo seu ditongo crescente: se abraçaram, numa pontuação tão minúscula, que nem um período simples passaria entre os dois.
Estavam nessa ênclise quando ela confessou que ainda era vírgula: ele não perdeu o ritmo e sugeriu um longo ditongo oral, e quem sabe, talvez, uma ou outra soletrada em seu apóstrofo.
É claro que ela se deixou levar por essas palavras, estava totalmente oxítona às vontades dele, e foram para o comum de dois gêneros. Ela totalmente voz passiva, ele voz ativa.
Entre beijos, carícias, parônimos e substantivos, ele foi avançando cada vez mais: ficaram uns minutos nessa próclise, e ele, com todo o seu predicativo do objeto, ia tomando conta dela inteira. Estavam na posição de primeira e segunda pessoas do singular, ela era um perfeito agente da passiva, ele, todo paroxítono, sentindo o pronome do seu grande travessão forçando aquele hífen ainda singular.
Nisso a porta abriu repentinamente. Era o verbo auxiliar do edifício. Ele tinha percebido tudo, e entrou dando conjunções e adjetivos nos dois, que se encolheram gramaticalmente, cheios de preposições, locuções e exclamativas.
Mas ao ver aquele corpo jovem, numa acentuação tônica, ou melhor, subtônica, o verbo auxiliar diminuiu seus advérbios e declarou o seu particípio na história. Os dois se olharam, e viram que isso era melhor do que uma metáfora por todo o edifício. O verbo auxiliar se entusiasmou, e mostrou o seu adjunto adnominal.
Que loucura, minha gente. Aquilo não era nem comparativo: era um superlativo absoluto. Foi se aproximando dos dois, com aquela coisa maiúscula, com aquele predicativo do sujeito apontado para seus objetos.
Foi chegando cada vez mais perto, comparando o ditongo do substantivo ao seu tritongo, propondo claramente uma mesóclise-à-trois. Só que as condições eram estas: enquanto abusava de um ditongo nasal, penetraria ao gerúndio do substantivo, e culminaria com um complemento verbal no artigo feminino.
O substantivo, vendo que poderia se transformar num artigo indefinido depois dessa, pensando em seu infinitivo, resolveu colocar um ponto final na história: agarrou o verbo auxiliar pelo seu conectivo, jogou pela janela, e voltou ao seu trema, cada vez mais fiel à língua portuguesa, com o artigo feminino colocado em conjunção coordenativa conclusiva."

[Desconheço o autor]

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

“Não haveria criatividade sem a curiosidade de que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos.”
(Paulo Freire)
A Ciência não corresponde a um mundo a descrever. Ela corresponde a um mundo a construir.” (Bachelard)
“ Há uma idade em que se ensina o que se sabe, mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência , a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe a sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos.” (Roland Barthes)

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

"ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO, INCULTA E BELA"
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A expressão "Última flor do Lácio, inculta e bela" é o primeiro verso de um famoso poema de Olavo Bilac, poeta brasileiro que viveu no período de 1865 a 1918. Esse verso é usado para designar o nosso idioma: a última flor é a língua portuguesa, considerada a última das filhas do latim. O termo inculta fica por conta de todos aqueles que a maltratam (falando e escrevendo errado), mas que continua a ser bela.


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LÍNGUA PORTUGUESA

Olavo Bilac


Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amote assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!



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OUTROS textos e POEMAS SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA


Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.

Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. "Fabricou Salomão um palácio..." E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa . Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.


["Livro do Desassossego", por Bernardo Soares. Vol. I, Fernando Pessoa.]



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SONETO À LÍNGUA PORTUGUESA

(Publicado no Livro Gota de Orvalho, de Waldin de Lima, poeta gaúcho, no ano de 1989)


Havia luz pela amplidão suspensa
no azul do céu, vergéis e coqueirais...
e o Lácio, com fulgores divinais,
abrigava de uma virgem a presença...

Era um castelo de ouro, amor e crença,
que igual não houve, nem haverá jamais...
Onde os poetas encontraram ideais
na poesia nova, n'alegria imensa...

A virgem era a Língua portuguesa,
a mais formosa e divinal princesa,
vivendo nos vergéis de suave aroma!

Donzela meiga que, deixando o Lácio,
abandona os umbrais do seu palácio,
para ser de um povo o glorioso idioma!...


REAL, REAIS...
Cláudio Moreno

Uma leitora japonesa, casada com um brasileiro, escreve de Quioto para elogiar esta coluna.
Como o casal pretende mudar-se para o Brasil, ela vem estudando regularmente o nosso idioma, mas tem encontrado algumas dúvidas que os livros de que dispõe não conseguem solucionar.
"Não consigo entender, professor, por que parabéns não tem singular e por que real, a moeda brasileira, não tem plural". Como vou mostrar a seguir, minha cara leitora, não é bem isso o que acontece por aqui.

Em primeiro lugar, não podemos afirmar que parabéns não tem singular. É certo que existem, em nosso idioma, muitos vocábulos que praticamente só usamos no plural, conhecidos como pluralia tantum - expressão tradicional da gramática latina que significa "apenas plurais". E não são tão poucos assim; entre os mais conhecidos, lembro-te afazeres, anais, arredores, bodas, condolências, confins, esponsais, fezes, exéquias, núpcias, parabéns, pêsames, primícias, víveres.
Como a marca do plural é sempre acrescentada a uma forma anterior, não-marcada, não há dúvida de que todos eles têm (ou tiveram) uma forma singular, que, por razões semânticas, simplesmente deixou de ser empregada. Em textos mais antigos, vais encontrar, aqui e ali, alguma ocorrência de pêsame, fez, boda, etc., prática logo abandonada. Nosso estimado Padre Vieira, em seus Sermões, escritos no século 17, usa parabém por toda parte, inclusive fazendo um jogo de palavras tão ao seu gosto: "Alcançaram o que pediram, aceitaram muito contentes o parabém do despacho, mas o despacho não era para bem". Certamente haveríamos de achar outros exemplos em escritores da mesma época, mas isso não deve obscurecer o fato, hoje incontestável, de que esses vocábulos devem ficar mesmo é no plural. Para fins práticos, devem ser considerados como aquelas cadeias de montanhas que também sugerem a existência de um singular perdido na noite dos tempos: os Alpes, os Andes e os Pirineus.
Quanto ao nosso real, admito que muita gente simplesmente não utiliza a forma do plural, sob a misteriosa justificativa de que é o nome próprio do nosso dinheiro (!); conseguem, sem enrubescer, dizer vinte real, assim como os camelôs cariocas falam de dez dólar. Estas pessoas devem ter memória curta, para esquecer que, em vernáculo, nossas moedas sempre tiveram singular e plural: sempre se falou e escreveu cruzeiros e cruzados; continuamos a nos endividar em dólares e em euros; as páginas da literatura estão repletas de tostões e vinténs, piastras e rupias, patacões e balastracas.
Quando a nossa atual moeda foi instituída, houve uma breve discussão sobre qual seria o seu plural; os mais afobadinhos encontraram "real - pl. réis" nos dicionários e vieram, triunfantes, corrigir os que começavam a dizer reais. Em pouco tempo, contudo, esclarecia-se o equívoco: réis era o plural de um real virtual ("moeda ideal", diz Morais), valor apenas de referência; o verdadeiro real, antiga e respeitável moeda portuguesa, fazia mesmo o plural reais (como, aliás, qualquer substantivo terminado em -AL). O velho dicionário de Morais (minha edição é de 1813) é bem rico em detalhes: explica-nos que havia os "reais brancos del-Rei D. Duarte; eram de cobre com estanho, 20 deles faziam uma libra e valiam 36 réis"; "os reais pretos, de cobre sem liga"; e "os reais de prata".
Portanto, prezada leitora, quem te disse que aqui não pluralizamos o nome da nossa moeda enganou-te direitinho, pois assim fazemos desde 1994. E já que vens morar no Brasil, brindo-te com uma útil observação: o antigo mil-réis hoje serve para designar, popularmente, qualquer unidade do inconstante dinheirinho brasileiro; eu já usei mil-réis (o nosso simpático merréis, avô da merreca) para falar do cruzeiro, do cruzado, do cruzado-novo, do cruzeiro-novo e agora do real. Se um dia - que os deuses não permitam! - surgir o real-novo, vou continuar a dizer "Custa dois mil-réis".
(Porto Alegre, 13 de novembro de 2004 - Jornal Zero Hora, Edição nº 14328)

[Prof Cláudio Moreno - E-Mail claudio.moreno@zerohora.com.br - www.sualingua.com.br]